Que me mata e consome aos poucos, que dentre tantos sentimentos, é o único que nunca me abandona, o mais entranhado na minha alma, no meu olhar perdido no horizonte, nos calmos suspiros, nas caminhadas loucas e sem rumo pelas ruas da minha cidade, na angústia que chega de leve, no silêncio da noite, na penumbra do meu olhar.
Doce melancolia,
Que me corrói, que não vai nunca, que fica no gosto do chocolate, no fumo do cigarro e nos jeitos tresloucados com que gesticulo pelos espaços.
Doce melancolia,
Que me transporta para os sonhos mais doces, que me traz o amargo gosto da saudade, que me faz admirar a morte que o Inverno transparece, que me faz morrer face ao mar, em estranhas e incompreensíveis orações, à voz de Deus no canto marítimo na falésia que sonho e anseio.
Já aprendemos isto, não foi? Já dissemos "até amanhã", sem que houvesse o amanhã para um de nós. Já imaginámos que teríamos mais um dia, mais uma semana, um mês ou um ano, sem que tal chegasse a haver. Viver implica muito mais que amar, rir, que pensar que cada dia possa ser o último. Viver, viver verdadeiramente, é nem sequer imaginar que aquele possa ser o nosso último dia. É nem sequer nos lembrarmos que possa não haver uma outra noite, que possa não haver um outro amor, uma outra gargalhada. Viver é rodearmo-nos de amigos e rir até doer a barriga, comer e beber, sentir tudo com toda a intensidade. Viver é bom e viver é lindo, mas viver e sentir, pode ser uma terrível maldição. Viver e saber o que se perdeu, não conseguir, não poder esquecer, pode ser uma das dores maiores que um pode ter. Já aprendemos muito, não foi? Continuemos a aprender. A querer. A desejar. A sonhar. A amar. A rir. A comer e beber, com os amigos, com a família. Continuemos a ser quem somos, não importa quem, nem o quê.
Há coisas sobre as quais já deveria ter desistido de escrever. Há coisas sobre as quais não falo, senão quando o assunto é puxado, como um bafo numa ganza. Há coisas que parecem que insistem em cruzar as nossas vidas, como se quisessem dar razão à opinião dos outros. No final de contas, acabo sempre por escrever sobre aquilo que deveria deixar quieto, porque há um comentário aqui ou ali, porque há quem há-de aparecer e perguntar por essas coisas. Antevendo o que acontecerá, adivinhando as minhas reacções interiores, escrevo. Escrevo muito. Escrevo para purgar a minha alma dos efeitos nocivos, daquilo que acham que é bem, que é por bem.
Eu pondero cada vez menos nas coisas. Quero é viver em sossego, longe de palpitações, longe de verdades, longe de mentiras. Quero, apenas, viver, sentir o vento na cara, sentir o calor de um fogueira no inverno, passar despercebido por entre as gentes. E, mesmo que me olhem, que não me vejam passar.
Sabes? Eu queria tanto desta vida. Mas agora... só quero a quietude de um fim de tarde, lá numa aldeia remota, distante de tudo isto, de toda esta vida da cidade, de toda esta existência cheia de loucura, palavras, olhares, sorrisos. O mar bate na areia. No meu imaginário, será nas rochas, lá em baixo, da falésia, enquanto o horizonte se funde com o vasto oceano. E serei eu, o mar e o vento.
Ouço a música (Lisa Gerrard "Redemption II"). Estou sentado no sofá, a fumar um cigarro. Aprecio este momento a sós. Como se nada mais houvesse no mundo, senão eu, a voz de Lisa Gerrard e o meu cigarro. A sensação solitária. Agridoce. Precisava de mais. Queria mais. Até que esse mais começou a parecer demais e reduzi-me a isto, a estes instantes a sós, de música que só eu sinto, que só eu compreendo, lá bem no meu íntimo. Queria mais. E, como se se passassem séculos, milénios por mim, tornei-me numa dessas estátuas que duram séculos, milénios, escondidas pelas areias do tempo, longe de olhares alheios. Uma cruel realidade, de um tempo há muito ido, há muito esquecido. Ouço e sinto a música. E, perante ela, sinto-me reduzido à insignificância da minha prisão de carne, que dizem ser um corpo, onde habitam milhões de células, reacções químicas, sentimentos e o raio que parta tudo isto. Estou a sós. Aprecio estes momentos. Aprecio esta solidão.
Poderia estar a escrever isto da rua, de onde acabo de chegar. Poderia estar a escrever de um dos cantos escuros, por entre discussões ou conversas mais altas. Não prestar atenção ao que se passa à minha volta. Mas isso seria demais. Tenho ganho uma renovada confiança, sob vários aspectos. Olhar fixamente as coisas. Observar. Atingir um estado quase distante, mas presente. Manter o foco. Conversar ou escutar e observar do meu canto. Absorver os seus comportamentos, como o álcool os faz agir. Antes, chegava a ter medo. Hoje em dia, sou parte daquilo. Antes, temia mais. Hoje, estou consoante. Soubesses como eu vejo e como eu sinto. Soubesses como, sob aquela fragilidade toda, existe algo mais forte, que face ao receio, enfrenta as noites de frente e muito do que receou. Hoje, queria que me visses, orgulhosamente, em meio a toda a confusão. Impávido e sereno, absorvendo os gostos da noite. Receios de outros dias, ainda são existentes. Ainda são uma realidade dentro de mim. Mas estou firme. Estou firme. Sorri. E sorrirei, ou talvez não sorria de volta. Depende de mim e das minhas fases de lua. Mas estarei, firme. Poderia estar a escrever da rua. E a fazer mais sentido.
Olá. Está tudo bem? Espero que sim. Espero, mesmo. Que tens feito? O de sempre? Casa, trabalho; trabalho casa? Isso é mau. Mas eu também não mudo muito as coisas. Practicamente, só tenho saído à noite, para trabalhar no café. Pois. É fodido. Bem, xau. Até amanhã.
Tens-me elevado. Mas quem és tu? De quem escrevo? Para quem escrevo? Será para ti que lês? Será para ele, que vive livremente, sem sequer pensar que eu existo? Tens-me elevado. E eu escrevo. Escrevo, porque escrever equilibra-me nestes dias, em que estou desiquilibrado, em que é mais forte a vontade de correr as noites, de silenciar o mundo, calar o que se pensa. Tens-me elevado, mas mesmo assim, não elevas a alma, a ponto a que ela não se feche, para que ela não se deseje escuridão e posterior esquecimento. Tens-me feito bem, mas eu não consigo sobrevoar essa floresta negra, tão negra, sem ter que percorrê-la - dor e amargura, escolho caminhar pelas ruas da minha cidade, enquanto se eleva a escuridão dentro de mim, a névoa que te envolve. Prefiro percorrer a minha aldeia, a mata, a conhecer. A conhecer gente nova, a dar de mim a gente nova. Prefiro o silêncio do cemitério, à força infindável desse olhar, ao bater do teu coração. Ou do coração dele? Ou ao coração de quem quer que seja? As horas passam e a minha imaginação deleita-se em ti, nos teus traços. Fumo um cigarro e deixo fluir a imaginação. Sabes? Tens elevado qualquer coisa de boa em mim. Não sei o quê, mas há sempre algo de bom e enternecedor nesse teu jeito - e eu serei sempre uma criatura de sombras, de trevas, alimentando-me da noite. Serei sempre a criatura esquiva, saída das trevas para se alimentar. Acendes uma vela. Aroma de incenso. E eu percorro os corredores da noite, qual assombração, imaginando-te por aí. Escrevo. Escrevo para mim, em jeito de devaneio, sem que saiba a quem se destinam as palavras ternas. A noite assoma-se ao meu peito e eu tremo de ilusão. E é em ilusão que me encontro - sem me perder.
Sonho. Sonho com terras distantes, com outros tempos, com outras eras. Sonho com palácios e com sombras de cortinas esvoaçantes, dançando com o vento que chega do deserto. Sonho. Sonho com os corpos nus, dançando pelas alas dos palácios. Dançando ao ritmo da música que chega de lá de fora, dos músicos da cidade, das músicas do mesmo deserto, que passei a vida a sonhar e a amar. Sem saber. Sem querer saber. Sonho. E enquanto vou sonhando, vou perdendo a esperança. Porque enquanto sonho, sonho contigo. E enquanto quanto sonho contigo, vais vivendo a tua vida, longe, cada vez mais longe. Sonho. E escrevo. Escrevo por mim, para mim; vivo no desejo, vivo no sonho. E há verde dum lado, deserto do outro e, algures, encontra-se o mar. Tu. E eu. Cada um do seu lado, mas é o mar que me chama, é o mar que ama, é deserto em que me perco. É no deserto que me perco, nos meus sonhos, é no verde da mata que caminho à toa, é junto ao mar, ouvindo a sua canção, que entôo orações silenciosas, como se fosse o ouvido de Deus.