Desafio De Escrita Do Triptofano | O Mimo Das Aparências
No centro do palco. O holofote foca-o.
Faz o seus gestos estudados. Dá voltas e mais voltas, solta as suas gargalhadas silenciosas. Esbarra contra paredes imaginárias e esfrega a cabeça, como se a pancada tivesse sido dolorosa. Faz o seu número, pronto a ser o centro das atenções. Os outros, assitindo ao espectáculo, cercam-no. Uns riem. Outros, aplaudem. Outros, ainda, vêem através da cortina de fumo e nada dizem. No fim da actuação, o mimo sente-se vazio, só e uma lágrima invísivel escorre-lhe pela maquilhagem.
Assim é a nossa sociedade: um bando de mimos a gesticular de forma cuidada e estudada, muitas vezes perdidos nas aparências e no espectáculo que damos ao mundo. Corremos os dias a mostrar, aos demais, facetas que se distanciam da realidade, deixando-nos consumir ou consumindo-nos por estranhos em camas que não são as nossas (ou, se calhar, até são), igualmente sedentos de espectáculo e de se largarem no vazio do amor desprendido do momento. Passamos os dias a fazer rir os outros, enquanto a profundeza do nosso ser sangra. Por vezes, o nosso espectáculo é o mais negro de nós, o mais profundo sentimento de mágoa, dor, desespero, desilusão. Tudo é uma festa e tudo é uma tragédia.
O mimo é todo e qualquer um de nós. E, todo e qualquer um de nós, pode ser um mimo - no fim do dia, o vazio consome-nos e as lágrimas, por vezes inexistentes, consomem as nossas almas, na sede que temos de ser o centro das atenções, na sede que temos de amar ou ser amados, consumindo-nos em camas carregadas de corpos e desejo, mas sedentos disso mesmo: de amor! O riso de um festa pode ser a lágrima no vazio da cama e do quarto. O gesto de acariciar um corpo estranho - ou conhecido, mas a quem nada temos senão desejo - pode ser o gesto estudado ou espontâneo com que atravessamos o vazio da noite e os espaços do quarto.
Nota: texto escrito no âmbito do Desafio de Escrita do Triptofano.
Peço desculpa ao amigo Triptofano e aos amigos que acompanham o meu blog, por ter demorado um pouquinho mais a escrever este texto. Ainda tentei escrever um rascunho à mão, porque adoro escrever à mão e fazia-o com bastante frequência, mas parece que o meu humor oscilante dos últimos dias tem impedido que me sentasse e escrevesse o que fosse. No entanto, aqui estamos e espero, sinceramente, que apreciem o texto.